Conversando sobre Transtorno de Processamento Auditivo Central (TPAC)

"Eu não entendo. Parece que meu filho não ouve, mas ele já fez audiometria várias vezes e sempre dá normal. Meu marido acha que ele 'ouve quando interessa'. Isso tem atrapalhado muito sua convivência em casa e na escola."

"Meu filho não presta atenção às aulas, conversa demais, brinca com a borracha em vez de fazer o que a professora pede, vive no 'mundo da lua'! Será que ele tem 'Déficit de Atenção e Hiperatividade'?"

"Meu filho se isola de todo o mundo. A professora diz que os coleguinhas o chamam para brincar, mas ele prefere brincar sozinho. Demorou a falar e tem muita dificuldade para comunicar o que pensa. Já me perguntaram se ele é autista, mas ele é muito afetivo e carinhoso. Pode ser um autismo leve?"

"Ah! Meu filho parece tão infantil para a idade! Eu fico com o coração pequeno quando o vejo brincando com os outros do grupo. Ele adora fazer graça, é o palhaço da turma, mas ele não percebe que os outros riem dele. Ele se dá melhor com crianças mais novas do que ele."

"A professora do meu filho perguntou se ele tem alguma deficiência, porque ele não aprende como os outros, não entende as regras dos jogos e se perde nas brincadeiras. Eu confesso que já pensei nessa possibilidade."

Estas e outras questões me são apresentadas com frequência. A criança parece ter algo errado, alguma coisa que não funciona normalmente e que gera dificuldades escolares ou de socialização, mas não preenche todos os pré-requisitos para os diagnósticos aventados acima. Isso pode ser Transtorno de Processamento Auditivo Central (TPAC)? Sim, pode. Vamos conversar sobre esse quadro que já existe formalmente há tantos anos, mas ainda é tão sub-diagnosticado?

Este texto foi escrito no formato de uma conversa, baseado nas perguntas que pais e profissionais da área da saúde e da educação costumam me fazer sobre o assunto. Tanto as perguntas como alguns trechos das respostas estão em negrito ou em itálico para chamar atenção ao que está escrito. Além disso, as palavras ou frases sublinhadas são links – clicando em cima delas aparecerá uma explicação.

Sugiro que, em um primeiro momento, você leia o texto inteiro. Use o acesso direto ao texto, a partir das perguntas destacadas abaixo, apenas depois de conhecê-lo.

TPAC? O que é isso?

É uma disfunção dos circuitos cerebrais responsáveis pela distribuição e processamento das informações obtidas através da audição.voltar

Quem tem TPAC tem perda auditiva?

Não. Audiometria normal não significa processamento auditivo normal.voltar

Quem tem perda auditiva também pode fazer avaliação do processamento auditivo (PA)?

Sim, para saber se além do prejuízo periférico existe um prejuízo central. No entanto é necessário fazer uma seleção cuidadosa dos testes. Isso vai depender do tipo e do grau da perda auditiva e se ela é simétrica ou não.voltar

Qual a causa dessa desordem?

Como a maioria dos transtornos neurológicos, podemos ter causas lesionais, maturacionais e genéticas. Acredito que a predisposição genética esteja presente na maioria dos casos maturacionais.voltar

Explique melhor. O que acontece nos casos lesionais?

Uma criança que sofra uma lesão cerebral precoce por anóxia de parto, encefalite, hemorragia cerebral ou traumatismo cranioencefálico, por exemplo, pode perder parte dos neurônios responsáveis pela distribuição da informação auditiva no cérebro.voltar

Por que precisamos distribuir a informação auditiva para outras áreas? Nós não escutamos em um local específico do cérebro?

Sim, nós temos uma área primária específica para receber as informações auditivas, mas, e daí? Não basta escutar. Para que a informação escutada promova uma resposta do organismo, o estímulo tem que chegar às áreas da memória (já escutamos antes?), às áreas da linguagem (o que significa isso que eu escutei e que já tinha escutado antes?), às áreas das emoções (estão falando sério, brigando ou brincando?), às áreas motoras (preciso executar um ato – escrita, atividade corporal etc. – relacionados com aquilo que eu ouvi), às áreas visuais (para associarmos o que escutamos a uma imagem) etc.voltar

É verdade. As coisas não acontecem de forma mágica no cérebro.

Isso! A comunicação entre os neurônios, através das sinapses, é que determina o funcionamento cerebral. E as áreas primárias, que já nascem prontas, necessitam que os circuitos das áreas de associação desenvolvam suas sinapses após o nascimento.voltar

Quer dizer que nosso cérebro não nasce pronto?

Não apenas não nasce pronto, como nunca termina de se desenvolver. Em condições normais, nascemos com os neurônios bem distribuídos, mas a comunicação entre eles acontece pela necessidade do uso da função.voltar

Se não precisarmos usar alguma parte do cérebro, a função correspondente não se desenvolve?

Exatamente. Um animalzinho de experimentação em laboratório que fique meses no escuro após o nascimento, vai ter seus circuitos visuais atrofiados. Já o uso frequente de determinadas funções aperfeiçoará a eficiência dos circuitos cerebrais correspondentes. A plasticidade cerebral é justamente essa capacidade que o cérebro tem de modificar sua sinapses para que o aprendizado ocorra.voltar

Voltando à TPAC: se, por uma lesão, perdermos os neurônios responsáveis por essa distribuição e processamento da informação auditiva, teremos uma TPAC de causa lesional?

Seguramente! Nesse caso, é comum que a criança apresente outros problemas além da TPAC, já que as lesões podem ser extensas. Muitas vezes o que mais prejudica o paciente é a somatória de problemas secundários às lesões e tratar a TPAC, às vezes, não é prioridade.voltar

É frequente essa causa de TPAC?

Em serviço público de atendimento, dentre as pessoas de baixo nível socioeconômico, que têm dificuldades de acesso aos cuidados à saúde em geral, à assistência à gestação e ao parto, ou que têm desnutrição precoce na vida, os casos lesionais podem ser a maioria.voltar

E as causas genéticas e maturacionais?

Na estatística de consultório, são a maioria.voltar

E como acontece?

Nesses casos, os neurônios estão íntegros, porém não se comunicam de forma eficaz. Há uma pobreza de sinapses nos circuitos associativos do PA e nós dizemos que esses circuitos não estão suficientemente maduros para a idade.voltar

E isso é determinado geneticamente?

Em parte, sim. O ritmo de desenvolvimento cerebral depende do padrão herdado e da presença de estímulos adequados para que esse desenvolvimento ocorra.voltar

Estímulos adequados? Bem, parece que todo o mundo ao nascer é exposto aos sons, às vezes até demais! Nesta situação, como pode acontecer de alguém não ser exposto a estímulos adequados?

Muitas crianças têm tendência a catarros na orelha média, atrás dos tímpanos. A presença dessa secreção impede o tímpano de vibrar e, portanto, de transduzir a onda sonora de pressão em impulso nervoso. Com isso, a quantidade de estímulos que chega à área primária da audição não é suficiente para desenvolver a rede sináptica auditiva.(ver imagem da anatomia da orelha)voltar

Mas, nesse caso, a criança não escuta direito. Não seria um caso de perda auditiva?

Nesse momento da vida, sim, mas quem nota que um bebê de meses, um ano ou dois escuta pouco? Perceba que não é surdez total ou permanente, mas flutuante e reversível. Há momentos do dia, ou dias da semana, ou semanas do mês, em que ele escuta melhor, outros em que escuta menos.voltar

E o que provoca essa secreção na orelha média?

Alergias, por exemplo. O bebê que costuma ter o nariz "encatarradinho", até pela anatomia da tuba auditiva nessa idade, deixa escorrer para o ouvido a secreção. Bebê que mama deitado deixa escorrer até leite para lá.voltar

Então essa criança deve ter muita dor de ouvido!

Nem sempre. Se essa secreção na orelha média for contaminada com bactérias, a criança desenvolve as conhecidas otites médias agudas de repetição, com febre e dor de ouvido. A criança volta e meia tem que tomar antibióticos. Mas se não houver contaminação bacteriana, o sintoma pode ser sutil, apenas a perda oscilante e irregular da audição.voltar

Se ela tratar as alergias, se conseguir eliminar a secreção da orelha média, então ela sara de tudo?

Pode sarar da dificuldade auditiva, mas ficar com as áreas de associação da audição imaturas, por falta de estímulos na idade mais favorável para que essa maturação ocorra.voltar

Quer dizer que existe um momento ideal para o cérebro ser estimulado a amadurecer?

Sim. Esse momento ideal varia de acordo com a função cerebral. Para o processamento auditivo temos três fases que vão de 0 a 2 anos, de 2 a 7 anos e de 7 a 14 anos. A primeira fase é fundamental para que todo o amadurecimento ocorra. O atraso dela pode repercutir em todo o resto.voltar

Ah! Agora entendi o que seria uma Transtorno de Processamento Auditivo Central Central maturacional. Mas você disse que o fator genético costuma estar presente nos casos maturacionais. Por quê?

Porque nem todas as crianças que tiveram otites agudas bacterianas de repetição ou otite média secretora desenvolvem TPAC. Muitas normalizam a função auditiva por completo ao sarar desse quadro de secreções. Só o fato de voltarem a ouvir bem permite que a maturação dos circuitos como um todo venha a acontecer, sem precisar de tratamento especializado.voltar

Então o problema auditivo no início da vida deixa sequelas em quem tem predisposição para isso?

Exatamente. Como a maioria dos transtornos de saúde, é uma junção de fatores que dá origem ao problema.voltar

Existe TPAC em quem nunca teve lesão cerebral nem doenças de ouvido na infância? De causa exclusivamente genética?

Sim. Nesses casos a incidência de problemas semelhantes na mesma família costuma ser fácil de identificar.voltar

E como é o quadro clínico de uma criança com TPAC?

O quadro clínico vai depender de quantas e quais funções do processamento auditivo estão comprometidas. E também se existem co-morbidades.voltar

Então o Processamento Auditivo divide-se em vários itens?

Sim. Podemos ter alterações isoladas ou combinadas de: decodificação (entender o que se ouve), codificação (construir uma informação com base no que ouviu, integrando esta informação auditiva a outras funções cerebrais), organização (representar eventos sonoros no tempo) e prosódia (entender aquilo que está por trás do que se ouve). Avaliando-se a capacidade de um indivíduo em responder diferentemente à presença ou ausência de sons da fala (detecção); diferenciar estes sons (discriminação) e identificar estes sons (reconhecimento), podemos inferir em como está a habilidade deste indivíduo em compreensão de linguagem.voltar

Por isso o quadro clínico pode ser muito diferente de um paciente para outro?

Sim, pode. Ele depende de quantas funções estão comprometidas e em que intensidade.voltar

Dá para fazer um resumo do que pode acontecer?

Podemos ter uma criança:

  • COM ATRASO DE AQUISIÇÃO DA FALA:
    por ter escutado pouco no início da vida.
  • COM DIFICULDADE DE ALFABETIZAÇÃO:
    a dificuldade de audição leva a alterações na formação da linguagem na estrutura cerebral; para ela é difícil fazer a relação entre grafema (a forma da letra) e o fonema (o som da letra). Isso pode gerar um quadro semelhante à dislexia, embora, sendo secundário, não preencha os quesitos necessários para esse diagnóstico.
  • DESATENTA:
    1) em ambientes ruidosos, porque isso prejudica a decodificação;
    2) quando o estímulo predominante for o auditivo e não houver um estímulo visual reforçando a informação, porque ela perde-se no meio da atividade;
    3) quando a dificuldade de compreensão deixa-a insegura e ela prefere fugir para uma atividade mental fantasiosa que disfarce sua incapacidade.
  • AGITADA:
    quando a dificuldade de acompanhar o que acontece em volta a deixar insegura ou confusa; para disfarçar sua incapacidade.
  • COM DIFICULDADE DE MEMORIZAÇÃO:
    específica para a memorização e resgate de informações auditivas.
  • EXCESSIVAMENTE INGÊNUA:
    por não entender emoções nem duplo sentido no que ouve.
  • EXCESSIVAMENTE BRINCALHONA:
    a ponto de ser inconveniente e incomodar os próprios colegas, pois "é melhor fazê-los rir com ela do que dela".
  • ISOLADA:
    pois sente-se excluída ou incompreendida pelos colegas da mesma idade.
  • QUE PREFERE FICAR COM ADULTOS:
    pois os adultos são mais compreensivos com suas dificuldades.
  • QUE PREFERE BRINCAR COM CRIANÇAS MENORES:
    pois a elas consegue impressionar e liderar. voltar

Por que ficamos com a impressão de que a criança só ouve quando quer?

Porque o nível de compreensão oscila. Quando o ambiente for mais silencioso e quando houver reforço visual, ela vai poder compreender melhor. Além disso, é claro, todos nós nos envolvemos mais e melhor nas atividades que nos dão prazer.voltar

É por isso que apesar de desatenta ela consegue ver filmes do início ao fim?

Sim. Como o estímulo visual é predominante, ela consegue manter-se envolvida nessa atividade. Uma criança desatenta que consiga ver filmes inteiros desde bem pequena, ou que fique horas brincando com lego, provavelmente não tem TDAH e sim TPAC.voltar

Às vezes me parece que meu filho tem preguiça de estudar, já que para ver TV ele é atento...

Eu costumo dizer que preguiça não existe. Sempre que seu filho tiver preguiça para fazer alguma coisa, procure um outro motivo para isso. No caso do TPAC é fácil entender que a dificuldade desmotive o estudo, pois existe grande possibilidade de fracasso. E se você ficar rotulando-o de preguiçoso, ele tenderá a assumir cada vez mais esse papel. Pelo contrário, demonstre entender o quanto é difícil para ele e valorize seu esforço. voltar

E depois de suspeitarmos de TPAC, como fazemos o diagnóstico?

É necessário fazer uma avaliação audiológica que inclua a audiometria (a criança escuta?), imitanciometria ou impedanciometria (o tímpano vibra?) e, por fim, assegurado que essas duas etapas estão suficientemente normais, o processamento auditivo. Esses exames são feitos por um fonoaudiólogo especializado, em uma cabina acústica, geralmente em uma a três sessões, dependendo da idade do paciente e do nível de colaboração durante o exame.voltar

Mas, se o momento ideal para o cérebro ser estimulado e amadurecer as conexões auditivas já passou, o TPAC é tratável? Tem cura?

Na maioria das vezes, sim. Os casos lesionais podem pelo menos melhorar. Os maturacionais e/ou genéticos, na maioria das vezes, curam completamente com estimulação adequada.voltar

E como é esse tratamento?

Existem várias formas de tratar que se complementam. Estimulação formal em cabine, quando a criança é mais velha e colabora com o treinamento auditivo; tratamento clínico fonoaudiológico, indispensável; e tratamento medicamentoso.voltar

Existe remédio para TPAC?

Existe, embora seja um tratamento coadjuvante apenas. Homeopatia é uma excelente opção, pois torna o cérebro mais responsivo aos estímulos e acelera o resultado do tratamento fonoaudiológico. Existem trabalhos que sugerem que algumas drogas estimulantes podem também ser úteis, mas confesso que considero uma medida exagerada quando o problema é isolado. Se houver co-morbidade com TDAH, a indicação seria pelo TDAH. Você pode ler mais sobre isso no texto do site Conversando sobre TDAH.voltar